Artigo – Reforma na lei de registros públicos: desafios e avanços na regularização de desapropriações e servidões administrativas – Por Malirre Abadi Ghadim e Ana Caroline Nascimento de Andrade
A atuação conjunta contribuirá com a política de regularização fundiária no país, auxiliando a população na prática, ao disseminar as informações e inovação do sistema registral.
A Lei Federal 6.015/73, conhecida como LRP – Lei de Registros Públicos, foi criada na década de 70, e, ao logo dos anos, o seu cumprimento exigiu diversas adaptações à realidade e necessidade dos usuários do sistema de registros públicos do país.
Além disso, ela regula também o registro de imóveis, que é regido pelo Princípio da Especialidade Objetiva, o qual exige “plena e perfeita identificação do imóvel na matrícula e nos documentos apresentados para registro”1, definindo em seus artigos alguns procedimentos para orientar, além dos usuários do sistema, os Cartórios sobre o registro de imóveis e direitos reais.
É cediço que só é dono aquele que registra em seu nome o direito real sobre o imóvel e, para tanto, deve submeter-se a todos os trâmites e procedimentos impostos pela Lei, fiscalizados pelos respectivos Cartórios imobiliários.
Em outras palavras, desde a criação da LRP, quando o país teve um período de considerável ascensão imobiliária, com expansão urbana e rural, previu-se a necessidade de criar mecanismos para proporcionar segurança jurídica aos direitos decorrentes desse crescimento, criando-se procedimentos para documentar e registrar as propriedades. Ocorre que da década de 70 até o presente, as necessidades e a realidade dos usuários do sistema de registros, bem como os próprios Cartórios, sofreram para se adaptar ao rigor dos procedimentos estabelecidos em lei, que não acompanhou a expansão populacional e territorial, nem as tecnologias desenvolvidas para facilitar o mapeamento e identificação de áreas rurais e mais distantes no país.
O Princípio da Especialidade Objetiva, por muitos anos, foi visto como um obstáculo para efetivar os direitos de propriedade, por culpa do rigor excessivo com que a LRP era, equivocadamente, aplicada por alguns operadores do direito registral e imobiliário.
A dificuldade de compreender os procedimentos e manejá-los, na prática, em favor dos usuários do sistema, permitiu que, após décadas de expansão territorial, ainda existam estados do Brasil com extrema precariedade registral. A exemplo, foi realizado levantamento da situação imobiliária do estado da Bahia pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal Estadual, e constatou-se que cerca de 85% dos imóveis não possuem registro2 ou títulos de propriedade, permanecendo precários, apesar da riqueza e desenvolvimento na região.
Já o estado de São Paulo, apesar de parecer “avançado”, por ter seus imóveis registrados nos Cartórios imobiliários, enfrenta o problema da obsolescência de seus registros, visto que foram abertos há décadas, e já não refletem mais a realidade física e jurídica dos imóveis escriturados junto aos Cartórios de Imóveis.
Para desengessar os procedimentos, e avançar na regularização de 5 décadas de expansão imobiliária, foi editada a Lei Federal 14.620/233, que alterou a redação da LRP e criou o Art. 176-A, dispositivo que regulamenta os procedimentos para registro de imóveis e direitos reais junto aos Cartórios extrajudiciais do país.
Permitindo a oxigenação do Princípio da Especialidade Objetiva, as alterações mantiveram a segurança jurídica dos procedimentos registrais, dispensando burocracias desnecessárias aos usurários do sistema. As formas de aquisição originária da propriedade, como usucapião, servidão e desapropriação, foram beneficiadas pela desburocratização, pois conforme o novo Art. 176-A da LRP, é possível registrar os direitos reais usando gama diversificada de documentos, como Memoriais Descritivos, Plantas, Levantamentos Topográficos e Georreferenciamento, por exemplo.
Para atender à Especialidade Objetiva, basta que a documentação seja clara o suficiente para identificar o imóvel na base territorial, permitindo a qualquer pessoa a sua distinção dos demais. Destacamos que, antes do Art. 176-A da LRP, os maiores óbices para o registro imobiliário incidiam sobre as servidões e desapropriações por utilidade pública constituídas em favor da Administração ou as suas entidades delegadas, como concessionárias de serviço público, as quais, mesmo constituídas regularmente e de forma lícita, não tinham os registros levados à cabo, ainda que fossem apresentadas Carta de Sentença e documentação fundiária completa.
Caso o imóvel do qual derivou o direito real não tivesse matrícula prévia, nem fosse georreferenciado pelos proprietários, os Cartórios impunham como condição para registro, a prévia regularização do imóvel originário, para, só então, proceder à abertura de matricula e registro do direito real.
Isso significava que o requerente precisava fazer a planimetria, georreferenciar, cadastrar e lançar nos bancos de dados do governo, como SIGEF e SICAR, toda a área do imóvel, que seria de propriedade de outrem, apurando suas divisas e confrontações, abrir matrícula imobiliária. Ressaltando que, também deve arcar com todos os custos com honorários técnicos, taxas e emolumentos de Cartório, além de impostos, para, só então, efetivar o registro de seu direito real.
Essa sistemática desvirtuava o Princípio da Especialidade Objetiva, impondo ônus excessivos aos requerentes dos registros, corroborando com as omissões dos proprietários e órgãos governamentais, responsáveis pela identificação imobiliária e seu e registro na base territorial.
Dessa forma, o Art. 176-A da LRP prestigia o referido princípio porque atribui ao requerente do registro imobiliário apenas as providências relacionadas à área sobre a qual recai o seu direito real, dispensando exigências relacionadas à regularização (precariedade) do imóvel originário da servidão ou desapropriação.
Na prática, para registro da servidão administrativa, por exemplo, que afeta parte de uma área sem prévia matrícula, o Cartório de Imóveis deverá proceder ao registro do direito real, criando nova matrícula, apenas para a servidão, com base na área e coordenadas da Declaração de Utilidade Púbica (DUP) e demais documentos fundiários, conforme prevê o caput do Art. 176-A da LRP.
Essa previsão de dispensa de georreferenciamento do imóvel originário já era permitida pelos Tribunais, nos casos de suscitação de dúvida no procedimento de registro, regulada pelo Art. 198 da LRP, conforme demonstram os julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, abaixo:
Registro de Imóveis – Servidão administrativa instituída por decisão judicial. I – Exigência de prévia averbação da inscrição do imóvel serviente no Cadastro Ambiental Rural – CAR que não deve subsistir. “Servidão administrativa” não se confunde com “servidão de passagem” para os fins do item 125.2 das NSCGJ. Informações que integram o CAR devem partir do proprietário ou possuidor do bem imóvel (objeto da inscrição), nos moldes da Lei nº 12.651/2012 e do Decreto nº 7.830/2012, e não da empresa concessionária do serviço público de transmissão de energia elétrica, até mesmo porque têm o condão de criar restrições de uso para os primeiros (delimitação dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das Áreas de Uso Restrito, das áreas consolidadas e, caso existente, também da localização da Reserva Legal, nos moldes do art. 29, § 1º, III, da Lei nº 12.651/2012). Elaboração do CAR pela empresa concessionária que acarretaria, ainda, ônus desproporcional à extensão do direito de servidão administrativa. II – Emolumentos que devem ser fixados em consideração à avaliação estabelecida na demanda judicial, nos moldes do art. 7º, parágrafo único, da Lei Estadual nº 11.331/2002. Recurso provido, para afastar a dúvida suscitada pelo Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Assis-SP. (TJ-SP – AC: 10023636920188260047 SP 1002363-69.2018.8.26.0047, Relator: Pereira Calças (Presidente Tribunal de Justiça), Data de Julgamento: 30/04/2019, Data de Publicação: 21/05/2019)4
REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – TÍTULO JUDICIAL – SERVIDÃO ADMINISTRATIVA – ESPECIALIDADE OBJETIVA – TÍTULO QUE PERMITE IDENTIFICAR O LUGAR DA SERVIDÃO NO IMÓVEL SERVIENTE – AINDA QUE DESNECESSÁRIO O GEORREFERENCIAMENTO DO IMÓVEL PARA O REGISTRO STRICTO SENSU DA SERVIDÃO, BASTANDO QUE SEJA POSSÍVEL SABER ONDE ELA SE SITUA NO IMÓVEL, NO PRESENTE CASO HÁ IDENTIDADE DO TIPO DE MEDIÇÃO DO IMÓVEL E DA SERVIDÃO – ÓBICE AFASTADO – DÚVIDA IMPROCEDENTE – APELAÇÃO PROVIDA. (TJ-SP – AC: 10037210920188260358 Mirassol, Relator: Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral), Data de Julgamento: 24/04/2023, Conselho Superior da Magistratura, Data de Publicação: 28/04/2023)5
Veja que a alteração do Art. 176-A da LRP diminuiu as dúvidas nas interpretações do procedimento registral, evitando embates e delongas entre requerente e Cartório de Imóveis perante as Corregedorias de Justiça, trazendo celeridade para o processo de registro. De igual forma, se a área da Resolução Autorizativa de Utilidade Pública, na servidão, incidir sobre um, ou mais de um imóvel, que já possua matricula, não é necessário cancelar a matrícula originária ou averbar a servidão em todas as matrículas afetadas, bastando anotar nelas o desfalque relativo à área da servidão, com dispensa da retificação das descrições de área e georreferenciamento nas matrículas originárias, o que é previsto nos incisos I e II do Art. 176-A da LRP.
Eventuais divergências entre as descrições da matricula originária e a área da DUP de servidão, não constituem justificativa hábil para que o Cartório de Imóveis recuse a abertura de matrícula e registro do direito real, segurança trazida pelo § 4º do Art. 176-A da LRP. Nem mesmo alterações sobre a matrícula originária, posteriores à constituição do direito real pendente de registro, podem exigir retificações dos documentos fundiários que instruem o pedido apresentado ao Cartório, quem deverá proceder ao efetivo registro do direito real.
Nesse caso, na matrícula criada para registro da DUP de servidão, constará que o direito real deriva de áreas sem matrícula ou com matriculas pré-existentes, relativas aos imóveis afetados pela utilidade pública, mencionando-as e fazendo constar apenas a sua descrição georreferenciada, independentemente de qualquer precariedade que recaia sobre os imóveis originários.
Já nas modalidades de desapropriação e usucapião, a aquisição originária da propriedade pode, e deve, ser registrada com abertura de nova matricula, à parte da inexistência de prévio georreferenciamento ou matrícula da área originária.
Desta forma, a segurança jurídica não conflita com a especialidade objetiva, permitindo que a realidade física e jurídica do imóvel seja documentada, e fique disponível à consulta de terceiros, para avançar na cadeia de individualização imobiliária daquela circunscrição e adjacências, contribuindo com a regularização fundiária no país.
Por se tratar de alteração recente, o cumprimento do Art. 176- A da LRP depende de ações para atualização dos Cartórios Imobiliários, com a cooperação das Corregedorias de Justiça vinculadas, para disseminar os procedimentos e orientações entre os operadores do sistema registral. Além disso, é essencial que os entes delegados do Poder Público, como: concessionárias, autarquias e fundações, bem como operadores do direito imobiliário, tenham respaldo e assessoria técnica especializada durante a lide com os registros de imóveis, a fim de maximizar os benefícios introduzidos pelo Art. 176-A da Lei de Registros Públicos.
A atuação conjunta contribuirá com a política de regularização fundiária no país, auxiliando a população na prática, ao disseminar as informações e inovação do sistema registral, a fim de garantir o efetivo acesso e exercício do direito de registro, prosseguindo na expansão fundiária no Brasil, com a devida segurança jurídica.
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1 BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Provimento Conjunto nº 93/2020. Institui o Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, que regulamenta os procedimentos e complementa os atos legislativos e normativos referentes aos serviços notariais e de registro do Estado de Minas Gerais. […] Art. 715. […] IV – da especialidade objetiva, a exigir a plena e perfeita identificação do imóvel na matrícula e nos documentos apresentados para registro; Disponível em: https://2rimc.com.br/principios/#:~:text=Provimento%20Conjunto%20n%C2%BA.%2093/CGJMG/2020. Acesso em 01/09/2023;
2 FONTE: IRIB – Instituto de Registros de Imoveis do Brasil. Publicado em 13/05/2023. Disponivel em: https://www.registrodeimoveis.org.br/ba-reurb-cgj#:~:text=Segundo%20o%20juiz%20Leonardo%20Rulian,cart%C3%B3rio%20de%20registro%20de%20im%C3%B3veis. Acesso em 01/09/2023;
3 BRASIL. Lei Federal nº 14.620/2023, de 13/07/2023, DOU de 14.7.2023. Dispõe sobre […] a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos) […];
4 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Conselho Superior da Magistratura. Apelação Civel nº10023636920188260047, Conselho Superior da Magistratura. Data de Julgamento: 30/04/2019, Data de Publicação: 21/05/2019. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do. Acesso em 01/09/2023;
5 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Conselho Superior da Magistratura. Apelação Civel nº10037210920188260358, Data de Julgamento: 24/04/2023, , Data de Publicação: 28/04/2023. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do. Acesso em 01/09/2023;
Fonte: Migalhas